PRÓLOGO
Presságio
Fracos raios de sol penetravam timidamente as nuvens pesadas
que anunciavam que uma tempestade se avizinhava. Elyna estava sentada, solitária, diante da
grande janela de seu quarto, que dava para um dos jardins do castelo. O seu
olhar perdia-se nos confins do horizonte, entre as árvores da floresta e os
tons de um amanhecer opaco. Aquele era somente um de uma série de dias tristes,
marcados pela melancolia que tomava conta de tudo.
Só havia se passado uma semana desde que tudo mudara. Elyna
estava sozinha na quietude daquele quarto, como estaria sozinha a partir de
agora. Aladhar estava morta. Ela absorvera aquela informação, junto com as
demais que haviam chegado. Sua mente ainda não conseguia processar todos os
acontecimentos que sucederam aquela notícia. Sabia que precisava ser forte
naquele momento, mas sequer tinha forças para se levantar daquela cadeira.
Ela havia sido a última a saber da notícia da
morte da irmã. Contudo, sentira o momento que aquilo ocorrera. Eram
gêmeas, Elyna e Aladhar, e todos diziam que eram idênticas. Apenas os olhos as
diferenciavam: Os de Elyna eram azuis e os de Aladhar tinham uma tonalidade de
mel. Cada uma conhecia os pensamentos da outra e, mesmo com o passar dos anos,
quando os seus caminhos se separaram, ainda havia aquela ligação sutil, um
vínculo tenaz que as unia além da distância e lhes permitia trocar pensamentos
e sentimentos.
Elyna fechou os olhos e, na escuridão de suas pálpebras, pôde
ver o sorriso de Aladhar brilhar cheio de esperança no futuro. Um futuro que ela
não iria viver. Precisou balançar a cabeça para espantar da mente a imagem de
sua irmã. Aquilo a fazia sofrer ainda mais. Elyna havia lhe dito tantas vezes que
aquele romance não daria certo, tinha alertado Aladhar que havia algo errado
naquele homem, mas a irmã estava completamente apaixonada. E ela a entendia.
Sabia como era estar apaixonada. Então, mesmo não concordando, Elyna ajudara
Aladhar diversas vezes a fugir do castelo para encontrar seu amado.
Quando os pais descobriram, proibiram que Aladhar tivesse
qualquer contato com aquele homem, que acreditavam ser um humano e que, por
isso, era incapaz de viver em harmonia com seres de magia. A princesa, no
entanto, não se deu por vencida. Os dois continuaram a encontrar-se apesar de
todas as proibições. Continuaram sonhando com uma vida juntos e quebraram todas
as regras nunca escritas sobre a convivência entre seres de diferentes
espécies.
Elyna, por sua vez, sempre ficou ao lado da irmã e continuou
a ajudá-la. Acobertou a fuga de Aladhar quando esta descobriu que estava grávida
e resolveu morar com o amado. E por isso, Elyna agora se culpava. Aladhar tinha
morrido sozinha, em uma emboscada. Seu bebê provavelmente também estava morto. Sua
irmã ainda estaria viva se Elyna não a tivesse ajudado a fugir e tivesse
simplesmente seguido as ordens dos pais?
Na última vez que Elyna e a irmã haviam se encontrado Aladhar
estava radiante. Sua barriga denunciava que o bebê logo nasceria. Se
encontraram no lugar de sempre, próximo à pequena casinha em que Aladhar morava
com seu amado, no meio da floresta. A princesa vivia agora como uma camponesa,
mas Elyna nunca tinha visto a irmã tão feliz.
- Sinto sua falta. – disse Aladhar.
- E eu a sua.
As duas ficaram alguns momentos em silêncio, aproveitando
cada instante. Aladhar apoiou a mão nos cabelos da irmã e os acariciou.
Sentindo o aquele toque leve, Elyna teve vontade de ficar daquele jeito para
sempre porque no fundo de seu coração sabia, sentia que se o tempo não
parasse naquele instante, algo iria acontecer.
- Há algo que eu quero contar-lhe! – falou Aladhar, com um
sorriso no rosto.
- Diga-me! – disse Elyna, e a irmã segurou suas mãos.
- Nossos pais acham que ele é um humano e por isso não nos
aceitam juntos, não é? Eles nunca gostaram de humanos. Mas eles aceitariam um
ser de outra espécie?
- O que quer dizer? – questionou Elyna.
- Maerion é um dragão. – afirmou Aladhar.
- O que? – espantou-se Elyna. – Você sabia disso?
- Não. Ele contou-me há pouco tempo. Achou que não faria
diferença para nossos pais, pois continuamos sendo de espécies diferentes.
- Ele pode estar certo sobre isso. – disse Elyna. – Humanos
com certeza são, na opinião dos nossos pais, a pior raça desse mundo. Mas não
acho que se envolver com uma raça diferente era o que eles planejavam para
você.
- Nossos pais não podem planejar nossas vidas. – disse
Aladhar. – Elas são nossas. Nós é que decidimos o que fazer com elas.
- Mas nós somos Princesas do Povo das Fadas! Nós temos
deveres para com o nosso povo!
- Eu abri mão disso quando decidi fugir.
Elyna voltou para o castelo naquele dia com muitos
questionamentos. Ela e Aladhar haviam sido criadas para governar o Povo das Fadas,
assim como sua família fizera por centenas de anos. Contudo, enquanto Elyna se
dedicava a aprender sobre questões diplomáticas, acompanhando os pais em
reuniões importantes, bem como aos estudos sobre magia, Aladhar gostava de
estar com o povo, de andar pela cidade, comprar frutas no mercado e conversar
com as pessoas. Ela nunca demonstrara interesse no comando do reino.
Ela fechou os olhos mais um instante. Não aguentava mais. A
vida desmoronava em cima dela e toda a sua força desaparecia atrás de um
horizonte de sofrimento, diante de tudo o que havia acontecido. Sentia que o que tinha por dentro, fosse
lá o que fosse, iria engoli-la para sempre. Nada conseguia preencher aquele
vazio que, do coração, se espalhava pelo corpo inteiro, paralisando-a. Elyna lembrava
de cada detalhe, cada segundo desde que sentira que algo terrível acontecera a
sua irmã. No último dia em que
haviam estado juntas dera-lhe um abraço bem apertado e parecera-lhe que Aladhar
se dissolvia entre seus dedos, como se de alguma forma já não lhe pertencesse.
Voltavam à sua mente as lembranças de sua irmã, o sorriso
dela de manhã, o perfume de seus cabelos, o cheiro de sua roupa. Ao mesmo
tempo, as lembranças de quando contara tudo aos pais
assim que sentiu aquele terrível presságio, das buscas que se iniciaram
imediatamente e da confirmação da morte de Aladhar. A dor era dilacerante e, por mais que tivesse a impressão de
ter chegado ao fundo do poço, parecia que a cada dia descia mais nele. No seu
limbo, tudo era confuso, distante e sem vida.
Elyna lembrava
nitidamente da ameaça de os dragões invadirem a terra das fadas e dizimarem
toda a população, e de seus pais, o Rei e a Rainha, se sacrificarem pelo seu
povo para esconder o Reino Feérico nas brumas para evitar a tragédia iminente. Não tinha ido ao enterro da irmã, mas
lembrava-se do dia que haviam encontrado o corpo e que, de sua janela, vira a
pira ser acessa e a fumaça dela subir por horas em direção ao céu. Lembrava do
cheiro do óleo de lavanda, usado no corpo de Aladhar, que se espalhara junto
com a fumaça.
Uma batida abafada veio da porta, tirando Elyna de suas
lembranças. Ela autorizou a entrada, mas não se moveu. Nem mesmo olhou para
trás. Continuou com os olhos fixos no horizonte. Os esplêndidos olhos azuis de
Elyna, que agora estavam nublados.
- Vossa Majestade! – disse uma voz feminina a quem
imediatamente ela reconheceu como sendo de Jhad, a comandante do Exército Feérico.
– Todos a esperam na sala dos dois tronos para a vossa coroação.
- Preciso de mais alguns minutos. – disse Elyna, e suspirou
profundamente.
- Como desejar, Vossa Majestade. – disse Jhad.
- Por favor, fique aqui comigo! – falou a princesa,
levantando-se da cadeira e virando-se de frente para a comandante. Uma lágrima
solitária escorreu em seu rosto. – Não tenho mais ninguém nesse mundo.
De repente, caiu em prantos. Apertou os olhos na tentativa de
acalmar-se, mas não conseguiu.
- Você tem a mim! – disse Jhad, aproximando-se de Elyna e
abraçando-a. Sabia que não precisavam mais de formalidades naquele momento.
CAPÍTULO 1
Retorno
A lua estava alta no céu e se
escondia, de tempos em tempos, em meio às nuvens que ficavam cada vez mais
densas e numerosas, anunciando que uma tempestade logo chegaria. A Rainha Elyna
estava sentada em uma cadeira de frente à janela do seu quarto. A cena parecia
se repetir. Sentimentos se misturavam dentro dela. Sentia-se impotente mais uma
vez, como anos atrás. Ela não suportaria viver mais um dia como aquele, perder
novamente pessoas que amava.
Quando sua irmã e seus pais morreram, tinham dito a ela que o tempo amenizava todas as
dores. Mas, com ela, nunca parecera funcionar. Pelo contrário. A cada dia, a
cada minuto, as ausências se tornavam mais insuportáveis. E, agora, seu filho
estava em perigo, bem como sua sobrinha, que era tudo o que lhe tinha restado
de Aladhar.
Serondye, Aether e a capitã do Exército das Fadas tinham
desobedecido sua ordem e partido para Hallynor naquela madrugada. A Rainha
Elyna estava tomada pelo desespero. Sabia o que podia ter acontecido a eles.
Sabia que tudo aquilo podia tratar-se de uma armadilha dos dragões para
tirá-los do Reino das Fadas. E, justamente por isso, tinha ordenado que não
fossem para Hallynor. Contudo, não havia mais nada que pudesse fazer agora.
Mais uma vez ela estava de mãos atadas. Mais uma vez ela nada podia fazer pelos
seus.
Elyna sentia-se oprimida por aqueles sentimentos de
impotência e incerteza que corroíam suas entranhas. E o vento que soprava não lhe parecia comum,
tinha um final gélido que queimava a pele e congelava tudo por dentro. Um vento
álgido que parecia anunciar uma nova tragédia. Mesmo depois de tantos anos, a
ameaça ainda rondava aquela terra. O passado parecia não querer ir embora e as
lembranças vinham lhe assombrar, como se tudo fizesse parte de um eterno ciclo.
Ouviu-se um rumorejar surdo da trovoada que se aproximava e o
céu foi rasgado pela luz repentina de um relâmpago. Então,
de repente, um portal abriu-se na floresta, irradiando uma luz branca por entre
as árvores. A Rainha tomou fôlego
como se aquela fosse a primeira respiração da sua vida e levou a mão ao peito.
Elyna levantou-se às pressas da cadeira onde estava e deixou o quarto. Desceu
correndo as escadas e seguiu, às pressas, em direção à porta de saída do
castelo.
Em poucos instantes, estava diante das margens da floresta, onde
estava o Exército das Fadas, comandado pela Rainha Jhad. Os guerreiros
encontravam-se em posição de defesa, com seus pesados escudos na direção das árvores.
A Rainha Elyna correu ao encontro de sua esposa, que já dava ordens a seus
soldados.
Surgiram devagar, um a um, do meio das árvores. Serondye foi
o primeiro a aparecer e ouviu-se um grito de “baixem as armas” vindo da Rainha
Jhad. Logo depois, Calyna surgiu. Atrás dela vinham Lonerin e a família de
Aether, que olhavam em volta, sem entender onde estavam. Alguns deles estavam feridos,
os trajes sujos do sangue dos inimigos, ou sangue deles próprios.
A Rainha Elyna correu, aflita, na direção do príncipe e o
abraçou. Em seguida, dirigiu ao filho um olhar desesperado, depois de perceber
que Aether não estava no grupo. Serondye baixou a cabeça e um silêncio tumular
que não pressagiava nada de bom tomou conta do lugar. As lágrimas que guardara
desde o momento em que percebera que haviam partido para Hallynor, desciam
agora sem controle pelo seu rosto.
- O que houve com ela? – perguntou Jhad, aproximando-se do
grupo, quando percebeu que a esposa não tinha condições de falar naquele
momento.
- Eu não sei. – respondeu Serondye. – Tudo aconteceu rápido
demais. Fomos atacados. Ela se transformou e nos ajudou a escapar. Então, retornamos
para o lugar combinado, onde abrimos o portal. Depois ela mesma escapou. Nós a
vimos como um dragão, voando na direção da floresta, mas Moriz a perseguiu e...
- Ela está morta? – perguntou Elyna, com a voz embargada.
- Não sabemos. Ele a machucou e ela caiu na floresta. – falou
Calyna. – Dmthir voltou para ajudá-la e nossos caminhos se separaram.
- Eu não podia manter o portal aberto por muito tempo. Era
arriscado demais, poderia revelar nossa localização e isso causar um ataque ao
nosso povo.
- Precisamos encontrá-la! – disse Elyna.
- Eu posso tentar procurá-la com magia. – disse Serondye. –
Não vai ser fácil, mas posso começar do último lugar onde a vimos e seguir a
partir dali.
- Então vamos voltar para o castelo! – disse Jhad, com
firmeza. – E Serondye vai encontrar Aether.
Enquanto Calyna voltou para sua casa, os demais retornaram ao
castelo. A Rainha Jhad acomodou a família da moça e Lonerin nos quartos
restantes do lugar. Os pais de Aether ficaram no quarto mais próximo ao dela,
enquanto seus irmãos foram acomodados no final do corredor do segundo andar, ao
lado do quarto que Lonerin ocuparia.
Foram chamadas curandeiras para tratar dos feridos e Serondye
dispensou os cuidados e se dirigiu ao quarto de Aether, pois lá ficaria mais
próximo à energia da prima para conseguir encontrá-la. A Rainha Elyna
providenciou para que o jantar dos visitantes fosse entregue em seus
respectivos quartos e se juntou ao filho nos aposentos de Aether. A Rainha Jhad
logo se uniu aos dois.
O príncipe pretendia adentrar os sonhos de Aether para entender
onde ela estava e, assim, abrir um portal até o lugar para resgatar a moça e
Dmthir, que deveria estar com ela. Serondye sentou-se na cama de sua prima com
as pernas cruzadas e fechou os olhos. Estava exausto e desconcentrado e aquele,
nem de longe, era o cenário ideal para usar a magia. Contudo, não havia tempo
para grandes preparações.
Cada segundo contava, pois Aether corria muitos riscos
ficando em Hallynor por tanto tempo. Além disso, não sabiam se ela estava
machucada ou mesmo se Dmthir tinha conseguido de fato encontrá-la. A essa
altura, os dois poderiam, até mesmo, terem sido capturados pelos Cavaleiros
Dragão.
A água finalmente preencheu com seu tom leve o vazio imóvel
que antes abafava todas as coisas. Serondye mantinha-se em concentração
absoluta há horas. Sua respiração era tranquila e ritmada. Ele caminhava,
solitário, pela floresta de Hallynor, buscando pistas do paradeiro de Aether.
Seu corpo flutuava na névoa do éter, obedecendo sua mente, que estava atenta a
cada ruído daquele lugar. Mas tudo parecia estar na mais perfeita paz. Nada
mais que os sons comuns de uma floresta.
Serondye ouvia o piar de uma coruja, o vento batendo nas
folhas das árvores e até mesmo uivos distantes de lobo. Mas nada que parecesse
com sons de passos. Nada que lembrasse uma perseguição. O príncipe perguntou-se
se já não era tarde demais e se Aether e Dmthir haviam sido capturados e
estariam nas masmorras do castelo agora. Ele tentava, em vão, acessar os sonhos
de sua prima. Contudo, parecia que Aether mantinha-se acordada, o que
corroborava com a teoria de Serondye de que ela provavelmente estava agora em
poder dos dragões e, por isso, em total estado de alerta.
A tempestade que caia do céu negro e carregado de chuva e
dominava, ameaçadora, aquela terra, aos poucos deixou o lugar para os primeiros
raios do alvorecer. Serondye, ainda sentado na cama de Aether, abriu os olhos.
Suas mães estavam na sua frente, demonstrando aflição no olhar. O príncipe
respirou fundo, deixando claro que não tivera sucesso em sua busca.
- Há pelo menos alguma pista que nos permita achá-la? –
perguntou a Rainha Elyna, apreensiva.
- Nada. – disse Serondye, preferindo não compartilhar sua
teoria com as mães.
Um silêncio pesado tomou conta do ambiente. A tempestade diminuíra.
Já não se ouviam trovões, só o barulho leve da chuva que ainda caia. Serondye
encarava as mães, torcendo para que elas não notassem o medo que ele sentia
pelo destino de Aether. Um sombrio desespero anuviava seus olhos. A frustração
era tanta que lhe obstruía a garganta. Contudo, o príncipe respirou fundo mais
uma vez e falou:
- Continuarei a procurar. Não descansarei até encontrá-la.
O eco de suas palavras ressoou nas paredes do castelo.
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