Degustação FILHA DA MAGIA - Trilogia Etérea Livro II




PRÓLOGO
Morte

Sangue. Sangue por toda parte. No ar, seu cheiro metálico e um silêncio pesado, absoluto. Lá fora, o céu era negro como piche, pontilhado da trêmula brancura de dúzias de pequenas luzes. Não havia o menor sopro de vento, nenhuma voz, nem mesmo o farfalhar das folhas das árvores ou o piar distante de uma coruja. Somente a imobilidade da morte.
A pequena sala, de teto absurdamente baixo, tinha as paredes feitas de tijolos. Num canto havia uma lareira cujo fogo já estava quase que completamente apagado. O espaço apertado era pouco iluminado. Havia uma luz acanhada vinda das poucas velas em cima de uma mesa de madeira. O cheiro penetrante de sangue e de morte confundia-se com o de mofo.
Azor caminhou pesadamente até o corpo sem vida da fada e o virou com delicadeza. Um bebê recém-nascido estava entre seus braços, enrolado em um pano coberto do sangue da mãe que morrera com um golpe de espada. Em um instante, ele pareceu entender o abismo para onde havia escorregado, a abominação da qual participara, a insanidade que o dominara naqueles dias de perseguição.
Teve que fechar os olhos e sufocar, com força, o desejo ardente de abandonar tudo. Respirou fundo, tentando, em vão, apagar o que acabara de acontecer. O bebê começou a chorar copiosamente. Azor o pegou no colo e viu que estava ileso. O Cavaleiro Dragão começou a ninar a criança para acalmá-la. Seus irmãos permaneciam parados como estátuas de mármore, um em cada canto daquela sala.
Viu-se, então, uma forma surgir entre as sombras. A silhueta do homem ficava cada vez mais clara à medida que ele se aproximava da luz das velas até, enfim, revelar a imagem de Moriz. O dragão, que estava em sua forma humana, ainda segurava a espada com a qual ceifara a vida da fada. A arma estava coberta de sangue, que gotejava ritmicamente no chão.
As sombras projetadas no rosto de Moriz pela fraca iluminação das velas lhe conferiam uma aparência ameaçadora. Um ar sádico transparecia em seu semblante. O dragão estava coberto até os pés por roupas escuras. Seu nariz era fino e ele tinha um cavanhaque preto bem desenhado. Seus olhos amarelos em fenda, como os olhos de uma serpente, fitavam Azor, parecendo que invadiam sua alma.
- Posso saber o que está esperando para matá-lo? – questionou Moriz.
- Matá-lo? – Azor perguntou.
- Acha que depois de todo o trabalho que tivemos vamos mantê-lo vivo? – dessa vez foi Yhar que fez a pergunta. – Por qual motivo faríamos isso?
- Sua irmã tem razão! – disse Moriz. – Em que mundo você estava vivendo esses últimos meses, Azor? Maerion não pode ter um filho. Se ele morrer sem herdeiros, eu serei o próximo a comandar Hallynor.
- Mas o bebê é um mestiço. – falou Azor. – Não tem poder para...
- Não seja ingênuo, Azor. – interrompeu Moriz. – Você acha mesmo que Maerion se importa se essa criança é mestiça ou não? Se não tem coragem suficiente para isso, entregue-a a um de seus irmãos.
- Pode entregar a mim! – disse Yhar, com uma expressão ainda mais sádica que a de Moriz. Via-se claramente em seus olhos o quanto ela queria fazer aquilo. – Eu não aguento mais esse choro!
- Vamos, Azor! – ordenou Moriz. – Não temos tempo para demonstração de sentimento de culpa!
- Eu acho apenas que... – começou Azor, tentando pensar o mais rápido possível em uma justificativa que convencesse o pai a manter aquela criança viva. – O bebê pode ser útil.
- Útil? – questionou Moriz.
- Maerion não precisa saber que está vivo. – disse Azor, devagar, tentando ganhar tempo para sua cabeça formular algo. – Nós prosseguimos com o plano de culpar as fadas pela morte da mãe e da criança mestiça. Porém, ela nos pode ser útil de alguma forma no futuro. Ela não saberá sobre sua origem. Podemos até mesmo usá-la contra Maerion.
- Um trunfo? – ponderou Moriz.
- Exatamente. – falou Azor. – Um grande trunfo que pode derrubar Maerion. Não há como saber qual será a reação do grande dragão vermelho quando souber da morte de Aladhar e de seu herdeiro. Mantemos a criança viva sem que ninguém saiba. E se não nos for útil, podemos matá-la depois.
            Moriz permaneceu em silêncio por alguns minutos. Ouvia-se somente o choro do bebê ecoando na sala. Rahil e Dohor permaneciam no mesmo lugar, parecendo estátuas de pedra. Não haviam dado nenhuma opinião, como era de praxe. Como bons soldados que eram, os dois somente serviam e obedeciam Moriz. Já Yhar estava incomodada com a ideia de Azor. Ela queria matar aquela criança. Não porque seu pai havia mandado, mas porque gostava daquilo.
            Azor tentava controlar suas emoções para que elas não transparecessem em seu rosto. Mantinha os dentes cerrados e a expressão séria. E torcia para que seu olhar não denunciasse que, por dentro, ele rezava para que Moriz fosse convencido pelas suas palavras e desistisse de eliminar o bebê.
- Faça-o se calar! – disse Moriz, finalmente. – Ou vou acabar mudando de ideia.





 CAPÍTULO 1
Sozinho

Sangue e pânico não significavam nada para ele. Aquilo fazia parte de sua vida desde que podia se lembrar. Contudo, o castelo estava irritantemente inquieto. Os Cavaleiros Dragão andavam para lá e para cá preocupados, apreensivos, murmurando sobre o que tinha acontecido naquela manhã. Era algo que nunca havia sido visto antes: Um mestiço havia se transformado em um dragão. O que antes somente seu pai e alguns de seus irmãos pareciam saber, era agora de conhecimento comum em toda Hallynor.
            Pelo que ele acabou sabendo, aquela, na verdade, não era a primeira vez. Anos atrás, aquela mesma mestiça, que vivia presa em uma alta torre na terra dos Dragões, já se transformara e, dessa forma, conseguira fugir dali. E isso levava parte dos Cavaleiros Dragão a certos questionamentos: teriam todos eles esse mesmo poder?
            Garin, contudo, tinha a resposta: não. Ele coletou algumas informações e conectou todas elas, chegando à conclusão de que a mestiça era diferente de todos os Cavaleiros Dragão, pois era filha de uma fada e por isso a magia pulsava nela. Híbrida de dois seres mágicos, Aether tinha um imenso poder do qual ele suspeitava que nem mesmo a moça sabia.
            Seus irmãos mais velhos, Rahil, Dohor e Yhar, estavam trancados com seu pai, Moriz, há horas. Seu pai estava furioso, mas Garin não queria pensar nisso agora. Havia muita coisa na sua cabeça e ele precisava seguir seu caminho até as masmorras.
Naquele breu em que se encontrava, o ar parecia mais denso e pesado, com o cheiro típico de lugares fechados. Depois de um tempo, no entanto, seus olhos acostumaram-se à falta de luz e ele conseguiu vislumbrar os degraus úmidos e desconexos que mergulhavam nas trevas.
Desceu aquela escada com passos pesados, até chegar a um corredor estreito com oito celas dispostas de cada lado. O lugar era claustrofóbico e escuro. E havia somente dois prisioneiros ali: um em cada cela. Garin levara o jantar dos prisioneiros Dmthir e Lonerin, que haviam sido presos por traição naquele mesmo dia.
O rapaz empurrou as bandejas pelos buracos nas grades e, sem dizer uma palavra, ou mesmo olhar nos olhos de seus irmãos, virou-se em direção à saída.
- Como você consegue viver depois de tê-lo matado? – gritou Dmthir. Seus olhos estavam cheios de água. Garin parou onde estava. – ELE ERA SEU IRMÃO!
Garin ficou parado por alguns instantes, mas não se virou nem disse uma palavra sequer. Simplesmente voltou a andar para sair dali. Subiu as escadas e desapareceu na escuridão. Depois de sair das masmorras, o rapaz trancou a grande porta de madeira maciça com fechaduras de ferro fundido e parou de costas para ela.

***

Durante os primeiros dias naquele lugar, Garin se entregou por completo as tarefas de aprendiz de Cavaleiro Dragão. Treinamento de manhã e à tarde, serviços de vigia e ronda a noite, alternando com os outros. Contudo, apesar do esforço, ainda não era um cavaleiro. E se perguntava se algum dia o seria.
Ao menos o cansaço que aquela rotina lhe trazia o fazia esquecer de tudo o que havia passado, de sua mãe, do vilarejo, do menino inerte estirado no chão e coberto de sangue, assim como suas mãos também estavam. Fechou os olhos e pensou no pai. Havia sido ele a plantar aquela semente de violência em sua alma.
- Você não precisa ter medo dessas sensações. – disse Moriz, que estava em sua forma humana, de costas para ele.
- Mas elas são terríveis. – falou Garin, encarando seus pés. Estava nos aposentos do pai. Ele o havia chamado para lhe passar as ordens para sua primeira missão com os irmãos.
- A fúria é uma companheira. – disse o dragão. – Ela só precisa ser usada de forma controlada, para que não se desvie do foco e se perca do objetivo. Controle é poder.
- Ela me induz ao mal.
- Induziu a fazer o quê? – questionou Moriz. - Castigar alguém que difamou sua família? Chama isso de mal?
- Eu não quero matar.
- O que quer não faz diferença.
O pai, que nunca o tratara como filho, apenas mandara buscá-lo e ele todos os dias tentava entender o porquê. Moriz tratava seus filhos como soldados, serviçais. Mas isso não impedia o desejo de Garin em agradá-lo.  E, para isso, ele sabia que não podia ser somente um Cavaleiro Dragão, teria que ser o melhor. Não podia ser somente um dos soldados de Moriz. Tinha que ser o seu braço direito e seu homem mais fiel. Aquele anseio, aos poucos, tomava conta do jovem e logo se tornaria seu propósito.

Nos treinos com os irmãos, era perceptível que Garin era dotado de muita resistência, mas sua técnica não era propriamente impecável. Contudo, ele compensava as lacunas com intuição e fantasia. Logo, se tornou muito habilidoso, defendendo-se, evitando agilmente os ataques, escolhendo a hora certa para investir, pulando de um lado para outro com grande agilidade.
Aproveitava-se da própria rapidez para deslocar-se sem parar, desnorteando o adversário. Facilmente desarmava seus adversários, tirando os cajados de treino de suas mãos com um só golpe. Garin vencia até mesmo os irmãos mais velhos e mais experientes que ele. Menos Azor. Ele era o único que Garin nunca vencera.
Contudo, parecia que aquele era o dia em que aquilo mudaria. Usando sua melhor habilidade, Garin parecia estar dominando aquela luta contra seu irmão. Ele aumentou a velocidade dos movimentos, defendeu facilmente um golpe, virou-se e acertou o oponente no flanco esquerdo. De repente, o cajado de madeira voou das mãos de Azor, indo chocar-se com umas espadas apoiadas em um canto da sala. Então, Garin apontou seu próprio cajado para a garganta do irmão.
Porém, aquele momento de segurança foi suficiente para ver a vitória esvair-se entre as suas mãos. Azor fingiu que havia se rendido e, ao menor indício de guarda baixa, desviou-se perigosamente do cajado de Garin e, com apenas um golpe, desarmou o irmão e o derrubou no chão, imobilizando-o.
- Ei! – disse Garin, revoltado por ter perdido. – A luta havia acabado. Você se rendeu!
- Você supôs que eu me rendi. – disse Azor. – Você não imobilizou seu adversário. Me deixou livre para atacar novamente. No mundo real isso poderia ter lhe custado a vida.
- Mas não é justo! – protestou o jovem.
- A vida não é justa, irmão! – disse Azor virando as costas para Garin. – Você acabou de aprender que antes de lutar é preciso conhecer direito o seu adversário. E que a força de nada adianta sem a inteligência.

***

Garin desabou no chão de joelhos. Eram tantas as coisas que gostaria de esquecer, que precisava esquecer. Ele era um ser atormentado, uma criatura confusa e inquieta, perdida entre os impulsos que se desencadeavam à margem da sua consciência e o louco desejo de ser uma pessoa normal.
As lágrimas rolavam sem permissão pelo seu rosto. Ele nem lembrava quando havia sido a última vez que chorara. Nem mesmo sabia que ainda era capaz daquilo. Além das lembranças, que agora vinham sem controle em sua mente, os pensamentos também surgiam sem permissão.

“No mundo real isso poderia ter lhe custado a vida”

            Ele pensava sobre as escolhas que o haviam levado até ali, sobre o que o mantinha ali, quem era ele de verdade, ou mesmo quem ele queria ser. Garin sentia o mundo escapulir entre seus dedos. Tinha a impressão de que estava sendo atropelado por sua própria vida. Desde que encontrara Aether, as coisas pareciam ter mudado num piscar de olhos.
            Tudo se confundia num só turbilhão que o desnorteava. Tinha negado qualquer possibilidade de sentimento ligado a ela. Apressara-se em fugir do que parecia crescer em nele, algo que nunca experimentara antes, algo vivo e real que poderia levá-lo a perder o controle. E isso era algo que o aterrorizava. Garin temia as sensações avassaladoras e quase incontroláveis que ela trazia.

“Controle é poder”

            Precisava voltar a ter seu autocontrole, colocar sua cabeça nos eixos novamente. Pelo menos ele tinha sua espada. Era ela que o ajudava a manter o foco. Nela, suas emoções desapareciam, seus sentimentos se apagavam e sua mente se perdia no automatismo dos movimentos de seu corpo quando lutava.


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