PRÓLOGO
Morte
Sangue. Sangue
por toda parte. No ar, seu cheiro metálico e um silêncio pesado, absoluto. Lá
fora, o céu era negro como piche, pontilhado da trêmula brancura de dúzias de
pequenas luzes. Não havia o menor sopro de vento, nenhuma voz, nem mesmo o
farfalhar das folhas das árvores ou o piar distante de uma coruja. Somente a
imobilidade da morte.
A
pequena sala, de teto absurdamente baixo, tinha as paredes feitas de tijolos.
Num canto havia uma lareira cujo fogo já estava quase que completamente
apagado. O espaço apertado era pouco iluminado. Havia uma luz acanhada vinda
das poucas velas em cima de uma mesa de madeira. O cheiro penetrante de sangue
e de morte confundia-se com o de mofo.
Azor
caminhou pesadamente até o corpo sem vida da fada e o virou com delicadeza. Um
bebê recém-nascido estava entre seus braços, enrolado em um pano coberto do
sangue da mãe que morrera com um golpe de espada. Em
um instante, ele pareceu entender o abismo para onde havia escorregado, a
abominação da qual participara, a insanidade que o dominara naqueles dias de
perseguição.
Teve que fechar os olhos e
sufocar, com força, o desejo ardente de abandonar tudo. Respirou fundo,
tentando, em vão, apagar o que acabara de acontecer. O bebê começou a chorar copiosamente. Azor o pegou no colo e
viu que estava ileso. O Cavaleiro Dragão começou a ninar a criança para
acalmá-la. Seus irmãos permaneciam parados como estátuas de mármore, um em cada
canto daquela sala.
Viu-se,
então, uma forma surgir entre as sombras. A silhueta do homem ficava cada vez
mais clara à medida que ele se aproximava da luz das velas até, enfim, revelar
a imagem de Moriz. O dragão, que estava em sua forma humana, ainda segurava a
espada com a qual ceifara a vida da fada. A arma estava coberta de sangue, que
gotejava ritmicamente no chão.
As
sombras projetadas no rosto de Moriz pela fraca iluminação das velas lhe
conferiam uma aparência ameaçadora. Um ar sádico transparecia em seu semblante.
O dragão estava coberto até os pés por roupas escuras. Seu nariz era fino e ele
tinha um cavanhaque preto bem desenhado. Seus olhos amarelos em fenda, como os
olhos de uma serpente, fitavam Azor, parecendo que invadiam sua alma.
- Posso saber o
que está esperando para matá-lo? – questionou Moriz.
- Matá-lo? –
Azor perguntou.
- Acha que
depois de todo o trabalho que tivemos vamos mantê-lo vivo? – dessa vez foi Yhar
que fez a pergunta. – Por qual motivo faríamos isso?
- Sua irmã tem
razão! – disse Moriz. – Em que mundo você estava vivendo esses últimos meses,
Azor? Maerion não pode ter um filho. Se ele morrer sem herdeiros, eu serei o
próximo a comandar Hallynor.
- Mas o bebê é
um mestiço. – falou Azor. – Não tem poder para...
- Não seja
ingênuo, Azor. – interrompeu Moriz. – Você acha mesmo que Maerion se importa se
essa criança é mestiça ou não? Se não tem coragem suficiente para isso,
entregue-a a um de seus irmãos.
- Pode entregar
a mim! – disse Yhar, com uma expressão ainda mais sádica que a de Moriz. Via-se
claramente em seus olhos o quanto ela queria fazer aquilo. – Eu não aguento
mais esse choro!
- Vamos, Azor! –
ordenou Moriz. – Não temos tempo para demonstração de sentimento de culpa!
- Eu acho apenas
que... – começou Azor, tentando pensar o mais rápido possível em uma
justificativa que convencesse o pai a manter aquela criança viva. – O bebê pode
ser útil.
- Útil? –
questionou Moriz.
- Maerion não
precisa saber que está vivo. – disse Azor, devagar, tentando ganhar tempo para
sua cabeça formular algo. – Nós prosseguimos com o plano de culpar as fadas
pela morte da mãe e da criança mestiça. Porém, ela nos pode ser útil de alguma
forma no futuro. Ela não saberá sobre sua origem. Podemos até mesmo usá-la
contra Maerion.
- Um trunfo? –
ponderou Moriz.
- Exatamente. –
falou Azor. – Um grande trunfo que pode derrubar Maerion. Não há como saber
qual será a reação do grande dragão vermelho quando souber da morte de Aladhar
e de seu herdeiro. Mantemos a criança viva sem que ninguém saiba. E se não nos
for útil, podemos matá-la depois.
Moriz permaneceu em silêncio por
alguns minutos. Ouvia-se somente o choro do bebê ecoando na sala. Rahil e Dohor
permaneciam no mesmo lugar, parecendo estátuas de pedra. Não haviam dado
nenhuma opinião, como era de praxe. Como bons soldados que eram, os dois
somente serviam e obedeciam Moriz. Já Yhar estava incomodada com a ideia de
Azor. Ela queria matar aquela criança. Não porque seu pai havia mandado, mas
porque gostava daquilo.
Azor tentava controlar suas emoções
para que elas não transparecessem em seu rosto. Mantinha os dentes cerrados e a
expressão séria. E torcia para que seu olhar não denunciasse que, por dentro,
ele rezava para que Moriz fosse convencido pelas suas palavras e desistisse de
eliminar o bebê.
- Faça-o se
calar! – disse Moriz, finalmente. – Ou vou acabar mudando de ideia.
Sozinho
Sangue e pânico
não significavam nada para ele. Aquilo fazia parte de sua vida desde que podia
se lembrar. Contudo, o castelo estava irritantemente inquieto. Os Cavaleiros
Dragão andavam para lá e para cá preocupados, apreensivos, murmurando sobre o
que tinha acontecido naquela manhã. Era algo que nunca havia sido visto antes:
Um mestiço havia se transformado em um dragão. O que antes somente seu pai e
alguns de seus irmãos pareciam saber, era agora de conhecimento comum em toda
Hallynor.
Pelo que ele acabou sabendo, aquela,
na verdade, não era a primeira vez. Anos atrás, aquela mesma mestiça, que vivia
presa em uma alta torre na terra dos Dragões, já se transformara e, dessa
forma, conseguira fugir dali. E isso levava parte dos Cavaleiros Dragão a
certos questionamentos: teriam todos eles esse mesmo poder?
Garin, contudo, tinha a resposta: não.
Ele coletou algumas informações e conectou todas elas, chegando à conclusão de
que a mestiça era diferente de todos os Cavaleiros Dragão, pois era filha de
uma fada e por isso a magia pulsava nela. Híbrida de dois seres mágicos, Aether
tinha um imenso poder do qual ele suspeitava que nem mesmo a moça sabia.
Seus irmãos mais velhos, Rahil,
Dohor e Yhar, estavam trancados com seu pai, Moriz, há horas. Seu pai estava
furioso, mas Garin não queria pensar nisso agora. Havia muita coisa na sua
cabeça e ele precisava seguir seu caminho até as masmorras.
Naquele
breu em que se encontrava, o ar parecia mais denso e pesado, com o cheiro
típico de lugares fechados. Depois de um tempo, no entanto, seus olhos
acostumaram-se à falta de luz e ele conseguiu vislumbrar os degraus úmidos e
desconexos que mergulhavam nas trevas.
Desceu
aquela escada com passos pesados, até chegar a um corredor estreito com oito
celas dispostas de cada lado. O lugar era claustrofóbico e escuro. E havia
somente dois prisioneiros ali: um em cada cela. Garin levara o jantar dos
prisioneiros Dmthir e Lonerin, que haviam sido presos por traição naquele mesmo
dia.
O
rapaz empurrou as bandejas pelos buracos nas grades e, sem dizer uma palavra,
ou mesmo olhar nos olhos de seus irmãos, virou-se em direção à saída.
- Como você
consegue viver depois de tê-lo matado? – gritou Dmthir. Seus olhos estavam
cheios de água. Garin parou onde estava. – ELE ERA SEU IRMÃO!
Garin
ficou parado por alguns instantes, mas não se virou nem disse uma palavra
sequer. Simplesmente voltou a andar para sair dali. Subiu as escadas e
desapareceu na escuridão. Depois de sair das masmorras, o rapaz trancou a
grande porta de madeira maciça com fechaduras de ferro fundido e parou de
costas para ela.
***
Durante
os primeiros dias naquele lugar, Garin se entregou por completo as tarefas de
aprendiz de Cavaleiro Dragão. Treinamento de manhã e à tarde, serviços de vigia
e ronda a noite, alternando com os outros. Contudo, apesar do esforço, ainda
não era um cavaleiro. E se perguntava se algum dia o seria.
Ao
menos o cansaço que aquela rotina lhe trazia o fazia esquecer de tudo o que
havia passado, de sua mãe, do vilarejo, do menino inerte estirado no chão e
coberto de sangue, assim como suas mãos também estavam. Fechou os olhos e
pensou no pai. Havia sido ele a plantar aquela semente de violência em sua
alma.
- Você não
precisa ter medo dessas sensações. – disse Moriz, que estava em sua forma
humana, de costas para ele.
- Mas elas são
terríveis. – falou Garin, encarando seus pés. Estava nos aposentos do pai. Ele
o havia chamado para lhe passar as ordens para sua primeira missão com os
irmãos.
- A fúria é uma
companheira. – disse o dragão. – Ela só precisa ser usada de forma controlada,
para que não se desvie do foco e se perca do objetivo. Controle é poder.
- Ela me induz
ao mal.
- Induziu a
fazer o quê? – questionou Moriz. - Castigar alguém que difamou sua família?
Chama isso de mal?
- Eu não quero
matar.
- O que quer não
faz diferença.
O
pai, que nunca o tratara como filho, apenas mandara buscá-lo e ele todos os
dias tentava entender o porquê. Moriz tratava seus filhos como soldados,
serviçais. Mas isso não impedia o desejo de Garin em agradá-lo. E, para isso, ele sabia que não podia ser
somente um Cavaleiro Dragão, teria que ser o melhor. Não podia ser somente um
dos soldados de Moriz. Tinha que ser o seu braço direito e seu homem mais fiel.
Aquele anseio, aos poucos, tomava conta do jovem e logo se tornaria seu
propósito.
Nos
treinos com os irmãos, era perceptível que Garin era dotado de muita
resistência, mas sua técnica não era propriamente impecável. Contudo, ele
compensava as lacunas com intuição e fantasia. Logo, se tornou muito
habilidoso, defendendo-se, evitando agilmente os ataques, escolhendo a hora
certa para investir, pulando de um lado para outro com grande agilidade.
Aproveitava-se
da própria rapidez para deslocar-se sem parar, desnorteando o adversário.
Facilmente desarmava seus adversários, tirando os cajados de treino de suas
mãos com um só golpe. Garin vencia até mesmo os irmãos mais velhos e mais
experientes que ele. Menos Azor. Ele era o único que Garin nunca vencera.
Contudo,
parecia que aquele era o dia em que aquilo mudaria. Usando sua melhor
habilidade, Garin parecia estar dominando aquela luta contra seu irmão. Ele
aumentou a velocidade dos movimentos, defendeu facilmente um golpe, virou-se e
acertou o oponente no flanco esquerdo. De repente, o cajado de madeira voou das
mãos de Azor, indo chocar-se com umas espadas apoiadas em um canto da sala.
Então, Garin apontou seu próprio cajado para a garganta do irmão.
Porém,
aquele momento de segurança foi suficiente para ver a vitória esvair-se entre
as suas mãos. Azor fingiu que havia se rendido e, ao menor indício de guarda
baixa, desviou-se perigosamente do cajado de Garin e, com apenas um golpe,
desarmou o irmão e o derrubou no chão, imobilizando-o.
- Ei! – disse
Garin, revoltado por ter perdido. – A luta havia acabado. Você se rendeu!
- Você supôs que
eu me rendi. – disse Azor. – Você não imobilizou seu adversário. Me deixou
livre para atacar novamente. No mundo real isso poderia ter lhe custado a vida.
- Mas não é
justo! – protestou o jovem.
- A vida não é
justa, irmão! – disse Azor virando as costas para Garin. – Você acabou de
aprender que antes de lutar é preciso conhecer direito o seu adversário. E que
a força de nada adianta sem a inteligência.
***
Garin
desabou no chão de joelhos. Eram tantas as coisas que gostaria de esquecer, que
precisava esquecer. Ele era um ser
atormentado, uma criatura confusa e inquieta, perdida entre os impulsos que se
desencadeavam à margem da sua consciência e o louco desejo de ser uma pessoa
normal.
As
lágrimas rolavam sem permissão pelo seu rosto. Ele nem lembrava quando havia
sido a última vez que chorara. Nem mesmo sabia que ainda era capaz daquilo.
Além das lembranças, que agora vinham sem controle em sua mente, os pensamentos
também surgiam sem permissão.
“No mundo real isso poderia ter lhe custado a
vida”
Ele pensava sobre as escolhas que o
haviam levado até ali, sobre o que o mantinha ali, quem era ele de verdade, ou
mesmo quem ele queria ser. Garin sentia o mundo escapulir entre seus dedos.
Tinha a impressão de que estava sendo atropelado por sua própria vida. Desde
que encontrara Aether, as coisas pareciam ter mudado num piscar de olhos.
Tudo se confundia num só turbilhão
que o desnorteava. Tinha negado qualquer possibilidade de sentimento ligado a
ela. Apressara-se em fugir do que parecia crescer em nele, algo que nunca
experimentara antes, algo vivo e real que poderia levá-lo a perder o controle. E
isso era algo que o aterrorizava. Garin temia as sensações avassaladoras e
quase incontroláveis que ela trazia.
“Controle é poder”
Precisava voltar a ter seu
autocontrole, colocar sua cabeça nos eixos novamente. Pelo menos ele tinha sua
espada. Era ela que o ajudava a manter o foco. Nela, suas emoções desapareciam,
seus sentimentos se apagavam e sua mente se perdia no automatismo dos
movimentos de seu corpo quando lutava.
COMPRE FILHA DA MAGIA!
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