TUVALUN
BIBLIOTECA
DO TEMPLO DE HEMERA
7ª APA.
Documento
nº 3807
Carta aos humanos:
Normalmente
se chama de fantasia aquilo que os seres humanos veem, ouvem e sentem nos
primeiros anos de suas vidas e que não pode ser explicado pelas leis do mundo
humano. Mas será mesmo? Os anos passam e a
ignorância toma conta da mente, que perde a sua pureza e aprende aquilo que a
sociedade lhe impõe. É perdida, então, a capacidade do contato com o fantástico
mundo das fadas. Mas os seres que nele vivem continuam a coexistir com os
humanos e o seu espaço físico.
Desde
crianças vocês ouvem falar de nós, mas, à medida que crescem, aos poucos, vão
se esquecendo. Crianças humanas são tão puras que, pra elas, não é difícil nos
ver. Infelizmente uma criança não é criança para sempre. Elas crescem e viram
adultos ocupados. Frios. Apressados. Corrompidos. Apenas o que interessa são os
bens materiais. Os sentimentos são esquecidos e então as pessoas ficam cada vez
mais longe umas das outras. Suas únicas preocupações são com suas vidas vazias
e seu precioso dinheiro. E isso acontece por um só motivo: os adultos não sabem
como acreditar. Quando vão ficando mais velhos e a infância sobe à tona, nós
somos lembrados. Mas falar de magia parece ser algo proibido entre os humanos.
Para vocês, somos apenas fruto da imaginação de crianças criativas ou de velhos
esclerosados.
Os
humanos se esqueceram que um dia já viveram entre nós. Agora, eles destroem as
florestas e alguns de nós estamos desaparecendo rápido demais por isso. Já
outros, estão tendo de adentrar em um mundo que não é nosso. Um mundo novo e
desconhecido. Um mundo de guerras, tristeza, ódio e ganância. Estávamos até
hoje escondidos nas brumas, mas agora vemos que é hora de voltar, pois somos
criaturas de luz e voltamos para trazer o que falta a vocês. Somos seres da
terra, do fogo, do ar e da água. Somos seres protetores.
Observe o mundo ao seu redor. As pessoas que cercam
você são de fato humanos? Como pode ter tanta certeza assim? De onde você veio?
O que sabe realmente sobre a sua espécie? Eu disse realmente. Não o que se vê
em livros. Afinal eles foram escritos por vocês e vocês colocam neles o que
quiserem. Por que tantos humanos acham que existe uma verdade absoluta? Nada é
absoluto. E talvez nada seja real também.
Mesmo que não procure a magia, a magia pode estar
vindo procurar você.
Ellyllon
Capítulo
Um – Adoção
Em uma madrugada quente de
verão, uma criança de três anos é encontrada na porta de um orfanato, na
Califórnia. Um clarão, indicando que a manhã se aproximava, iluminou o céu no
momento em que Dorotéia, uma freira do orfanato, segurou a criança nos braços. Então,
a freira decidiu dar à menina o nome de Aurora.
Sete anos se passaram
desde aquele dia. A Amazônia, que no ano de 2028 havia sido declarada como
propriedade mundial, tornou-se propriedade dos Estados Unidos da América dois
anos depois. As florestas estavam quase que totalmente desmatadas e os oceanos,
poluídos. Ondas gigantes, juntamente com o aumento do nível do mar ocasionado
pelo derretimento das geleiras, devastavam o litoral de todo o mundo. Tempestades
de areia, terremotos, queimadas e tornados aconteciam frequentemente. O planeta
não parava de esquentar. Muitos animais haviam sido extintos. O mundo estava entrando em colapso.
Além disso, as pessoas
exigiam mudanças, soluções para inúmeros problemas e pressionavam cada vez mais
os governantes. Em resposta, os governos tornavam-se repressores. Em tempos
assim, acho que todos sabem o que acontece: ditadura, uma forma de governo em
que o cruel se torna facilmente sinônimo de eficaz e o diferente passa a ter o
mesmo significado que perigoso. A ditadura tornou-se mundial. As rebeliões e os
protestos eram silenciados e seus líderes sumiam “misteriosamente”. O medo
pairava sobre as ruas. Mas essas notícias não chegavam até as crianças. Muito
menos até as crianças de um orfanato.
Aurora
crescia nesse mundo, mas sem saber nada sobre ele. Criada em um orfanato regido
por uma religião rigorosa e com uma educação ultrapassada (onde a religião e os
governantes é que decidiam o que devia ou não ser ensinado), ela não sabia
sequer que existia um presidente para cada país. Mas ela queria saber mais.
Queria conhecer outras pessoas, outros países, outros mundos.
Ela se sentia diferente de
todas aquelas crianças com quem convivia. E todos faziam questão de que ela
nunca esquecesse o quão diferente era. Além disso, Aurora via coisas que outras
crianças não podiam ver e isso já tinha lhe gerado muitas idas ao Sufoco (um
armário muito apertado onde as crianças desobedientes tinham de ficar por horas).
Mas Aurora não deixava de
ver. Eram pequenas criaturinhas que brincavam com a menina. E até a tiravam do
Sufoco algumas vezes. Contudo, ninguém acreditava nela. Nem mesmo o único amigo
que ela tinha em todo o orfanato: Alex. O garoto não fazia piada com isso, como
os outros internos, mas sempre achou que Aurora tinha “a criatividade aflorada
demais para uma criança de nove anos”.
- Ei, esquisita! – Bárbara falou,
entrando no quarto. Seus cabelos loiros e ondulados balançavam quando ela
andava. – Não andou mais vendo aquelas coisas não é? – Aurora não respondeu,
apenas baixou a cabeça. – Já é muito ruim ter que dividir o quarto com você,
não piore tudo dizendo que vê insetos parecidos com pessoas na janela. – Aurora
continuou calada. – Sabe o que ouvi dizer? Que a diretora chamou um médico de
louco pra ver você e se Deus quiser, ele vai te levar pra um hospício e eu vou
ter o quarto só pra mim.
- Como você é má, Bárbara! – foi a
única coisa que Aurora consegui dizer. E saiu do quarto, chorando.
Bárbara
era uma criança muito cruel. Ela detestava Aurora sem motivo algum. Aliás, para
ela, o quarto era um motivo. Ela odiava ter de dividir seu espaço com Aurora.
Para a menina, também era muito difícil ficar no mesmo quarto que Bárbara.
E
o pior era que o único amigo de Aurora em todo o orfanato ia embora em dois dias.
Na semana anterior, um casal não muito jovem foi até o orfanato procurando uma
criança, um menino na verdade, para adoção. E eles adoraram Alex. Mas também,
quem não adoraria? Alex era muito gentil, esperto e educado. Talvez a melhor
criança que o orfanato tinha.
E
agora, Alex ia embora. Aurora não teria mais com quem conversar, nem quem a
defendesse quando falassem coisas ruins sobre ela. Ele não acreditava quando
Aurora lhe falava das criaturas que via, mas a menina não o culpava. Ela sabia
que, além dela, ninguém mais via aquelas pequenas coisinhas. Contudo, Alex era
a única pessoa que Aurora conhecia que não ria dela ou dizia que ela estava
louca. E ela era muito grata por isso.
- Oi! – disse Alex. O menino tinha um
rosto meigo e doce. E estava feliz em ver Aurora. Seus olhos azuis brilhavam.
- Oi! – a menina respondeu. Aurora
também estava feliz em ver seu amigo, mas estava um pouco triste, pois aquela
podia ser a última vez que via Alex. – Animado com a adoção?
- Um pouco... – disse o menino. – Bem,
na verdade, estou com um pouco de medo... Não sei se vou me acostumar.
- Ah, Claro que vai! – Aurora falou. –
Eu é que não vou me acostumar a ficar sozinha aqui.
- Você vai ser adotada em breve. Eu
tenho certeza! Quem não quer ter uma filha como você? – disse Alex e Aurora
sorriu.
- Bem, o caso é que você irá embora em
breve e eu ficarei aqui esperando que alguém venha me buscar. – disse a menina.
- Ainda anda tendo aqueles sonhos? – o
garoto perguntou, tentando mudar o assunto.
- Sim. – Aurora respondeu sem muito
entusiasmo. – Mas preferia não ter. É angustiante sentir que há alguém
esperando por mim, precisando de mim, sem que eu saiba quem é.
- Será que a moça que você vê em seus
sonhos é sua mãe? – Alex perguntou, com receio.
- Não sei. – Aurora pareceu um pouco
triste. – De fato, ela se parece um pouco comigo. Mas ultimamente não é só com
ela que eu ando sonhando...
- E com o que mais?
- Sabe aquelas criaturas que eu vejo?
- Ham... Sei. – disse Alex.
Aurora
sabia que ele não acreditava nas tais criaturas, mas ele não ia dizer nada para
magoá-la. Então, resolveu continuar. Ela precisava falar. E aquele seria,
talvez, seu ultimo momento com o amigo.
- Agora, eu sonho com elas. Faz alguns
dias que não aparecem mais para mim. Achei que finalmente tinham me deixado em
paz. Mas uma noite, apareceram no meu sonho.
- E como era esse sonho?
- Não sei direito. – Aurora falou,
tentando lembrar o sonho. – Era um lugar muito ensolarado e colorido... Tinha
muita gente, mas ninguém que eu conheço. E tinha as criaturinhas que eu sempre
vejo. Elas pulavam por toda parte. Mas aí tudo começou a ficar distante. Era como se um véu tivesse
sido colocado entre mim e aquelas pessoas. E então eu acordei. Eu senti como
se... algo faltasse em mim. Acho que senti saudade
do sonho.
- Que estranho!
- Muito. – disse Aurora. E então
voltou a se entristecer. - Será muito ruim ficar sozinha. Sem ter com quem
conversar...
- Eu nunca te deixarei sozinha. – Alex
falou. O rosto sério. – Estarei sempre com você, onde estiver.
- Nunca vou te esquecer. – disse
Aurora. E ele a beijou na bochecha. Ela sorriu.
Outra
manhã se levantou. E estava escura como sempre. Os raios de sol mais
persistentes conseguiam, com dificuldade, penetrar a nuvem espessa de fumaça. As
pessoas que andavam nas ruas da cidade usavam máscaras brancas cobrindo o nariz
e a boca e vestiam roupas pesadas e escuras.
O
orfanato onde Aurora morava era composto por dois andares e o térreo. No
primeiro andar, ficavam os quartos dos meninos. No segundo, encontravam-se os
quartos das meninas e das freiras. No térreo havia a biblioteca, a sala da
diretora, a cozinha, o refeitório e as salas de aula.
Os quartos eram pequenos e
divididos em um para cada duas crianças. O refeitório era amplo e havia apenas duas
mesas com grandes bancos de madeira ao redor. Nem Aurora nem nenhuma outra
criança fora na cozinha algum dia. A única coisa que conseguiam ver daquele
local era uma parte da pia de lavar louças, que estava sempre abarrotada,
quando uma das cozinheiras abria a porta para servir as refeições.
A biblioteca era o lugar
que Aurora mais gostava. Havia estantes e mais estantes recheadas de livros que
a menina podia ler até se passasse o resto de sua vida presa ali. Era lá que
Aurora passava a maior parte de seu de seu tempo livre.
Os horários no orfanato,
assim como suas regras, eram seguidos rigidamente. As aulas tomavam a maior
parte do dia. Começavam sempre às 9 horas da manhã, logo após o café, que era
servido às 8 horas. Depois havia o almoço, às 12 horas e as aulas recomeçavam
às 13 horas e iam até às 16 horas. O toque de recolher era às 20 horas, após o
jantar, que era servido às 19 horas. Então, entre as aulas da tarde e a hora de
dormir, Aurora tinha um tempo para conversar com seu amigo, Alex, ou ler um
pouco na biblioteca.
Contudo, as conversas com
Alex não eram muito fáceis, pois meninas e meninos não podiam ficar numa
proximidade considerada perigosa pelas freiras. Então, eles combinavam lugares
onde poderiam conversar sem serem incomodados. A biblioteca era um deles. Lá, entre
duas estantes, os dois passavam horas até ouvirem a sineta indicando que a hora
de dormir chegara.
E
era sempre a mesma coisa. Quando a sineta indicando que a hora de se recolher
chegava, Aurora e Bárbara se acomodavam em suas camas para esperar a freira
passar pelo quarto e conferir se as duas estavam lá. Cerca de quinze minutos
depois, duas das amigas de Bárbara vinham sorrateiras pelo corredor e davam
três batidas na porta. Então, ela abria e as três ficavam conversando até altas
horas da noite. Isso era muito ruim para Aurora, pois com o barulho ela não
conseguia dormir e ficava com sono durante as aulas. Mas naquele dia, Aurora
estava tão cansada e com tanto sono que nem o barulho da conversa de Bárbara e
suas amigas a incomodou.
Um
novo mundo se mostrou para Aurora. Era claro e bonito, nem um pouco parecido
com o que ela vivia. As pessoas acenavam para ela. E ela acenava de volta.
Sentia-se bem ali. Criaturas aladas voavam com o vento. Ao longe, Aurora viu um
castelo. Ela sabia que era para lá que iria. Sua casa. Aurora andava por entre
as flores e brincava com as pequenas criaturas aladas. Uma música começou a
tocar. Uma música que ela conhecia, mas apenas de seus sonhos. Então, ela viu
um bebê. Um pequeno ser que a olhava. Era uma menina. Devia ter uns dois anos
de idade. Era linda. Parecia um raio de sol. Ela olhava para Aurora, sorria
para ela.
A
pequena criança segurou sua mão e a guiou pelo jardim florido. Depois, soltou a
mão de Aurora e correu, desaparecendo entre os arbustos verdes. Aurora correu
atrás dela. Então, parou em frente a um grande espelho. Foi aí que viu a
criança novamente. A menininha estava dentro do espelho, no mundo em que Aurora
vivia, onde tudo era cinza. Mas tudo estava diferente agora. Parecia destruído. Não havia pessoas nas ruas.
Aliás, parecia que não havia ninguém ali há muito tempo. Aurora se aproximou do
espelho e a criança a viu. Ela apontou para Aurora, que não entendeu o gesto.
Contudo, levou apenas cinco segundos para que Aurora compreendesse que não era
para ela que a criança apontava, mas para o que estava atrás dela.
Aurora virou-se. O mundo
onde estava, tão ensolarado e colorido, parecia completamente destruído. Uma
lágrima rolou pelo rosto da criança e o mesmo aconteceu do outro lado do
espelho, com Aurora. No quarto, sem que ninguém percebesse, pois Bárbara já
dormia um sono profundo e suas amigas já haviam ido para seus quartos, Aurora
levitava a dois palmos de sua cama.
Mais uma manhã despertou.
Era sábado. Aurora olhava a rua pela janela de seu quarto. Flocos de neve começaram
a cair do céu. Algum tempo se passou até que a luz amarelada do farol de um
carro apontasse na esquina da rua. Ele se aproximou do orfanato. Era um carro
grande e azul e Aurora logo soube do que se tratava. Um homem vestido de terno
preto desceu do carro e abriu a porta de trás. Outro homem, que vestia um
sobretudo marrom saiu do carro e ajudou uma moça, de seus 30 anos, muito bonita
e bem vestida. Os dois dirigiram-se à entrada do orfanato, enquanto o motorista
entrou novamente no carro, onde ficou esperando seus patrões.
Aurora deixou seu quarto e
dirigiu-se à escada. Ela viu o senhor e a moça no saguão, junto à diretora e,
para a tristeza de Aurora, Alex. Ele não vestia mais o uniforme do orfanato.
Estava de cabelo arrumado e usava uma roupa que parecia ser cara. Seus novos
pais deviam tê-la mandado para ele. Aquela seria a última vez que Aurora veria
seu melhor amigo. E nem poderia se despedir.
COMPRE A FILHA DE GAIA!
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